Uma coisa é conhecer a história pelos livros. Outra é ver,
ouvir, sentir a angústia daquelas pessoas que tiveram suas vidas interrompidas.
É impossível sair do Museu do Apartheid do mesmo jeito que se entrou.
O princípio básico do apartheid era simples – segregar. Foi
traçada uma linha rígida que separava, de maneira clara e indiscutível, todas
as pessoas brancas das não brancas. E como não brancas eram enquadrados negros,
mulatos, asiáticos.
Na entrada do museu somos divididos, aleatoriamente, em
brancos e não brancos. Laura, branca. Eu, neguinha. Caminhos apartados. Um não
se mistura com outro. Tudo bem, depois a gente se encontra. Mas é uma maneira
bem didática de demonstrar como era a realidade.
Como está escrito no folheto do museu, ele não é um destino,
é uma jornada. Tragédia e heroísmo. Tirania e liberdade. Caos e paz. Será?
Nenhum momento do período é desprezado. Logo na primeira
sala é possível assistir ao discurso do presidente de então (esqueci o nome),
branco, justificar o regime de segregação. Sério: o sujeito dizia que estava
fazendo uma África do Sul para todos, com cada um no seu devido lugar, onde
todos seriam mais felizes. Nem o pior dos nazistas foi capaz de produzir uma
declaração tão cínica assim. Depois, temos a deportação para dentro da própria
cidade, a construção de Soweto pelos degradados, a vida sob o regime racista.
Cruel.
E aí surge Mandela. Ousou desafiar tudo. Tomou tiro. Foi
exilado em sua própria casa. Queimou o
passe que dava direito aos negros atravessarem a fronteira para trabalhar nas
casas dos brancos. Causou. Chamou a atenção dos países democráticos (piada, até
o Brasil, vivendo em ditadura plena, protestou). Por isso, passou 27 anos na
cadeia. E não foi só ele. Foram vários os corajosos que tiveram a ousadia de
contestar o sistema e que também acabaram sentenciados à prisão perpétua. Gente
de valor.
Gente que me faz crer em parte da humanidade. Só em parte.
“Quando os europeus
chegaram eles tinham a bíblia e, nós, as terras. Hoje, temos a bíblia e eles,
as nossas terras”.
Assim como os tupis, os guaranis, os yanomamis no Brasil, os
zulus e xhosas e outros povos da África do Sul, ninguém pediu para ser
colonizado por um povo mal educado, que se vestia com jabôs, calças pescador e
perucas. Mas foram os ingleses que primeiro chegaram. Mas eles até que foram
bonzinhos. Só ensinaram inglês aos locais. E todos aprenderam. A coisa ficou
esquisita quando os holandeses – aqueles que não conquistaram Olinda, chegaram
e tomaram o poder. Não foi assim tão rápido. Mas um dia eles se consideraram
donos do pedaço e decretaram, de um dia para outro, que a língua oficial do
país era o Africaner.
Torre de Babel é pouco. Crianças na escola já não podiam
aprender – a desculpa foi que as taxas pagas pela população branca para estudar
não justificavam sustentar escolas para a população negra. Adultos não se
comunicavam com seus patrões. O bicho pegou. Gente de brio.
“Quando ela chorava
por sua irmãzinha morrendo de fome, lembrou que ela mesmo estava com fome”
Desculpaê, gente. O assunto é triste mesmo. As pessoas
tinham fome em Soweto. E crianças foram assassinadas pela polícia só por reclamarem
o direito de entender a língua do professor.
Hector Pieterson, personagem da foto tragicamente famosa,
hoje tem um museu-memorial. Sua irmã trabalha lá. O amigo que carrega o corpo
na foto está em lugar incerto e não sabido.
Soweto. Dá para parar de chorar?
Dá. Despedi-me da África do Sul com muito orgulho
daquela gente.